Saudade
defumada
Chaves,
Trás-os-Montes, agôsto
AGORA vou
entrar no reino do meu guia. Comecei esta viagem - que é uma romaria de
amor - com Miguel Torga e é com êle que eu vou. É com êle que vou a
Trás-os-Montes. Não posso me esquecer daquela noite, numa pequena rua da
Tijuca no Rio de Janeiro mal sacudido por uma revolução sem sangue - e
entre as paredes de uma residência transformada em centro tansmontano, a
figura sombria de Miguel ao fundo da sala, a falar de um mundo seu.
Tendeiros, biscateiros, marceneiros, canteiros, taberneiros, carvoeiros e
outros eiros misturados a atacadistas, varejistas, sêco-molhadistas,
capitalistas e outros istas de um reino emigrado. O reino maravilhoso
daquela gente simples, da côr da terra, do coração grande e das mãos
sempre estendidas - para o abraço ou para o murro. Não exite povo mais
autêntico sôbre a face da terra que o povo de Trás-os-Montes.
OUÇO
ainda o poeta a falar de sua província, a uma saudade estatelada dentro
do salão. Um namorado a dizer maravilhas da namorada. A paixão -
desculpou-se êle - é uma fôrça terrível, move montanhas, transpõe oceanos
e obriga homens tímidos a essas violências do pudor. E lá ficou a falar
de Trás-os-Montes, procurando não meter na conversa sombra de literatura.
Suas palavras foram, na realidade, palavras físicas, realidades físicas,
como urgueiras floridas, talefes brancos, restolhos dourados - doirados dizem
êles - a fazerem, na oração, de sujeito, de verbo e de complemento.
EM vez de
catadupas de som, o homem despejou cêstos de uva, sacos de castanhas,
presuntos, facadas, procissões, feiras e uma encosta de Montesinho ou de
Barroso a servirem de pano de fundo aos olhos de uma platéia enlevada. Em
muitos olhos duros de português transmontano havia lágrimas. Talvez nos
olhos de gente que não chorasse nem na morte da mãe.
AO
escutar o idioma, como pedra cristalina, descendo das pedras de Torga,
via-o a fazer a barba do pai, em S. Marinho de Anta, a ajudá-lo na
semeadura, ou sentia-o a chorar numa fazenda de Leopoldina, em Minas,
adolescente ainda, sob um saco de café, onde o que pesava mais era a
saudade. Tenho a impressão de que essa palavra foi inventada aqui em
Trás-os-Montes.
NOS
poucos minutos daquela prosa, o telúrico levou seus irmãos pelo caminho
que vai à padroeira de cada freguesia, misturou o seu barro humano como
de sua gente, fazendo com que saísse da união a imagem verdadeira, ampla
e significativa dum berço que é todo simplicidade. Falou sem preocupação
de gramática nem de estilo, porque, ao primeiro sinal de retórica, aquêle
berço deixaria de embalar.
DE olhos
enxutos um povo esmagado de lembranças, Torga estendeu no soalho da sala
o mapa invisível de Trás-os-Montes, e cada um se sentiu com os pés
enterrados no húmus de sua aldeia. Os da Régua se sentiram na Régua. Os
de Vinhais, em Vinhais. Os de Mirandela, em Mirandela. Os de Carrazeda,
em Carrazeda. O que êle não imaginou é que eu, um brasileiro de Jaú,
estivesse em Vila Real, a beber do vinho honesto do Padre Henrique, a
almoçar na Quinta do Narciso, a comer em Rebordelo os salpicões da mãe do
meu companheiro Luiz dos Santos; a dormir, sôbre aquêle chão dos netos do
meu sangue, debaixo de uma ramada, como alguém que volta a uma pátria
escolhida. A sua pátria intelectual.
ENTREI no
regimento transmontano de Torga, formando a guarnição do pequeno mundo
que viu nascer a todos aquêles bons homens que estavam numa sala
explosiva de saudade. Desde então passei a mourejar com todos os glóbulos
sarracenos prestes a incendiarem como os xistos de lá. A saudade de um
trnsmontano é saudade defumada, que conserva a gostosura da carne, a
doçura do clima e a amargura da terra. O homem fêz descer a todos, fêz voltar
a todos, fêz chorar a todos, fêz chorar até a mim que não tenho nada com
isso.
VAI-ME a
baixar da Terra-Fria aonde nunca tinha ido, para a Ribeira à frente da
roga, de harmônio ao peito como um fadista. Depois fui contrabandear na
raia, senti-me a desconjuntar lusitanamente os verbos, a ceifar na lomba,
a saibra, a redrar, conforme a hora, conforme o tempo. Aportuguesei-me.
Amiguei-me com Portugal. De cama, de mesa e de graça.
- QUE
diabo de língua falas tu? - perguntou-me, em tom naturalmente altivo, um
pastor que descia a Chaves.
E ao ouvir o mestre no centro transmontano, recordei-me de Rubem Braga, a
dizer a Rachel de Queiroz que a língua portuguêsa emigrou para o Brasil
quando estava no apogeu - e em Portugal ficou apenas um dialeto falado
por um grupo reduzido. Até Camões é mais Camões recitado por um
brasileiro. Camões em ritmo português é Camões de pé-quebrado, diz a
presunção brasileira. Mas não é possível descrever a Portugal e muito
menos ao melhor que Portugal que está atrás dos montes, onde se grita ao
lá de fora: - Entre quem é! - Não se pode pintar a êsse quadro com as
nossas tintas. São fortes demais na luz. São fracas demais na côr.
NAQUELA
noite, em que, pela primeira vez, me levaram pela palavra para além do
Marão, a sala teve sol e neve. Como um hipnotizador, o gênio
transmontano, carrancudo e generoso traçou para cada um o rosto da amada
perdida. Fê-los subir, a todos, o outeiro da memória. Acendeu na alma de
cada um o fogo dos arraiais distantes. E todos, agachados, ficamos a ouvi-lo,
como a um pajé misterioso que estivesse a cortar fatias de lembranças.
Não, não era uma descrição, era uma comunhão, onde eu, como um maometano
que não sou entre cristãos que não eram, vinha juntar-me. Quem era de
Vila Flor passou mentalmente a apanhar azeitona na sala. Do Romeu, a
descascar sobreiros. De Favaios, a cozer trigo. Do Vimioso, a escavacar
pedreiras. Mas, eu?
- De onde é o amigo?
- Do Jaú.
- Pois entre no grupo. Entre como se fôsse de Freixo. Entre na roda e
coma amêndoas. Queria ficar de fora, o grande marôto!
-E nós, santinho? Somos de Pinhãocelo.
-De Pinhãocelo? Vamos, aparelhe os machos e ferre-lhes com a carga em
cima. Depressa! Pena não haver ninguém de Pocinho. Há? Ó criatura de
Deus, salte para dentro do rabelo e agarre-se à espadela. Mas cuidado! O
cachão da Valeira é traiçoeiro. Apegue-se a S. Salvador do Mundo.
E ASSIM,
dentro daquela sala em cuja ampliação agora estou, Torga, naquela noite,
teve seu reino animado. Os rios com barcos e barqueiros, as serras com
rebanhos e zagais, os lameiros com charruas e labradores. Todos olhavam
orgulhosamente, transmontanamente, para êsse reino viril de homens viris.
Nenhum outro reino mais belo, mais castiço e mais aberto. Entre quem é!
Nenhum outro reino tão capazmente servido pelo seus filhos nem tão
devassado, tão escancarado para os que chegam de alma aberta. Entre quem
é! A beleza de lá não tem maneirismo, nem o catecismo de lá é arcaico,
nem a fundura dos horizontes de lá significa perdição no vago, nem os
sentimentos dos habitantes são mesquinharias. De Trás-os-Montes,
perdoem-me os outros, Portugal exporta o melhor.
DE
Sabrosa ao Pinhão, do Tua a Bragança, da Régua a Chaves, de Freixo a
Barca de Alva ou em Boticas, é o que se vê: sempre o mesmo lençol de
fragas e a mesma gente a nascer nêle. A fisionomia dos relevos, a máscara
enrugada das penedias, a estimulante largura dos descampados corrempondem
no humano a uma fisionomia igual, recortada em granito, máscula, austera,
e, ao mesmo tempo, viva e generosa. Ouço ainda a se dizer naquela sala,
dentro da qual coube um pequena leira lusíada, que o destino quis que
houvesse no tôpo uma costeira, onde tudo tivesse caráter e dignidade.
Onde a vista pudesse desfrutar dali perspectivas originais, onde a enxada
pudesse mostrar na dureza dos torrões a dureza do aço, onde o fole do
peito se enchesse por inteiro a cada respiração, onde todos os sêres ali
nascidos ou ali vividos estivessem à altura.
PORTUGAL
encontrou em Trás-os-Montes o seu telhado, a lousa que lhe resguarda as
virtudes, a saúde física e moral, a tenacidade mourejadora (sempre os
mouros do meu sangue), a pureza dos costumes e a expressão mais nobre e
acabada das feições interiores, a mais severa e desassombrada parcela da
pátria, a mais estremada expressão do seu povo. A capa de honras daquele
mirandês que ali aparece não é um trajo de festa, mas o paramento dum
sacerdote laico da dignidade. A louça negra que nos vende êste oleiro de
Bisalhães não é, como parece, apenas barro amassado e cozido, mas o lado
noturno da fome na sua expressão estóica, porque existe um Portugal
pobre, que luta e sofre, a catar os seus próprios meios, a viver com os
seus próprios recursos, mas um Portugal que não pede esmolas nunca.
VAI
puxando lá embaixo o rabelo à sirga, um môço vai picando a junta de bois
ou abrindo a valeira na teimosa persistência. A admiração alheia é apenas
um estímulo para prosseguir. O transmontano sente a perfeição interior.
Sem favor algum, é perfeito desde a meneira de estender uma tigela de
caldo a um pobre, à larguesa de abraçar um amigo - ou em concretas
obras-primas de sabor, de graça, de habilidade e de figura. E até de
grossura, diria eu, ao colhêr dessa epopéia escrita a enxadão tôda uma
filosofia condensada num provérbio de sabedoria velha. Quem tripas comeu
e com viúva casou, sempre há de se lembrar do que por lá andou. Por lá
andei, com viúva não casei, por isto trago apenas, de Trás-os-Montes, um gosto
de saudade defumada, neste fim de viagem. |
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