O velho e o rapaz decidiram ir à
feira, como de costume, a fim de se aviarem por uns dias até à próxima ida.
Entre a compra de umas peúgas
para aquecer os pés, que o tempo não está de modos e de um bom sombreiro para
se abrigar da água, enquanto anda por lá no campo com os animais, as compras estão
mais ou menos feitas. Não fosse a tentação de se deslocar a uma daquelas
carrinhas modernas de venda que se abre de lado e fica pronta para o negócio,
que sempre é mais prática que andar a montar aquelas barracas, a estender
toldes, espetar ferros no chão e esticar cordas.
Ficou-se indeciso entre uma boa
entremeada bem rosadinha e umas boas costelas bem salgadas também.
Decidiu-se pela entremeada e
juntou-lhe mais umas postas de bacalhau, a contar ainda com o que tinha lá na
arca para mais uns dias.
-Quanto é? Perguntou o velho.
-25 euros. Respondeu o feirante!
-Mas com iba, se quiser sem iba
facho-lhe mais barato.
-Oh diabo! Respondeu o velho.
-Antão facha lá o mais barato que
eu não como do iba.
Eis que intercedeu o rapaz no
meio da conversa, guardando no bolso o brinquedo, conforme o velho lhe chamava
ao inseparável telemóvel.
-Não pacha factura?
-Passo mas tem que pagar o iba.
Respondeu o feirante.
-Então pache que é pra jogar no
carro. Diz o rapaz.
-Então são os 25 euros, sendo
assim. Diz o vendedor
-Eh rapaz! Chega-te pra lá que o
dinheiro é meu. Diz o velho.
-Mas podemos ganhar um carro. Diz
o neto.
-Na próxima vez ficas a guardar
as obelhas que ficas mais barato! Tens que pedir sempre qualquer coisa. Mais
balia jogar na raspadinha e biamos logo o que daba. Diz o velho.
Mas pronto por sorte até trazia
os documentos das finanças para ir tratar de se registar na actividade por
causa de vender uns borregos e os queijos de vez em quando, que isto agora é
obrigatório pagar por tudo, dizem eles.
Deve ser para compensar os roubos
dos graúdos.
E lá foram os dois no meio de
reclamações do velho com mais umas bananas no saco, a juntar ao IVA, das
compras da feira.
No dia de andar a roda, lá estava
o rapaz colado à televisão à espera que os nossos governantes lhe sorteassem o
carro.
Era uma euforia tudo andava atrás
do carro, mesmo os pobres e de barriga vazia. E quando havia dinheiro para uma
sêmea e uma entremeada pra juntar às batatas que havia lá em casa, lá vinham a
pedir a factura que agora é quase religioso.
Com tudo isto arranjaram maneira
de perder clientela, os que não passavam factura que acabavam por fechar as
portas do negócio e os que passavam factura acabavam por fechar na mesma,
porque os impostos eram muitos.
Contas feitas, poucos se safavam
lá na província que até ali era contas à moda do Porto, como se diz lá na
terra.
Bem, mas quem lucrava eram as Finanças
que metia tudo na linha, pelo menos no que toca a comprar pequenas coisas.
Ainda por cima à conta das facturas para o sorteio, sempre havia quem acabasse
por gastar mais do que precisava, só para ter mais uns números. É um incremento
à economia, gastando o que não se deve e pode.
Estas coisas pegam-se e nisto os
portugueses são bons, para jogos e sorteios, de resto pouco importa o pagar
mais por isto ou aquilo.
Venha lá o carro que se faz uma
festa.
E não que era o bruto de um AUDI!
Ao rapaz até brilhavam os olhos
com a ânsia de ver o sorteio.
Assim foi, saiu o sorteio e com
os olhos esbugalhados a olhar para o número sorteado e a senha que lhe foi
atribuída pelas finanças sonhava com aquele avião. Um Audi.
É certo que as hipóteses são
poucas, pois há quem todas as semanas tenha direito a centenas e centenas de
números, os ricos que compram o que querem. Esses sim têm mais hipóteses pois
podem comprar muitos Audis e muitas carnes e bacalhaus para o sorteio.
Agora ele só com aquele número
não tinha muita chance. Mas ele continuava a rezar.
Nisto quando sai o número
sorteado não é que lhe calhou mesmo a ele.
O rapaz nem queria acreditar, mas
pela algazarra lá na taberna onde viu o sorteio, com toda a gente a deitá-lo ao
ar e a fazer-lhe uma festa já começava a crer.
Até parecia que o carro tinha
saído àquela gente toda e mais não eram muitos que na aldeia a gente é pouca,
mas chegou para a festa.
Foram com ele em ombros, levar a
novidade ao avô.
O Velho nem queria admitir.
-Saiu-te um carro com a compra na
feira?
E a festa prosseguiu, agora
faltava vir o carro.
Esperaram, esperaram, e por entre
tantas dificuldades lá veio o carro carregado num reboque. Pois não tinham
carta nem o velho que já era velho para a tirar, nem o novo que ainda era novo
para isso.
Quanto ao pai lá emigrado em
Angola, também só tinha carta de mota, e mesmo quando vinha era a correr.
Gastaram uma pipa de dinheiro, só
para levarem o carro para a aldeia. Ficou o velho sem a parca poupança que foi
amealhando para a velhice.
O carro ali estava prostrado à
porta, no meio do curral a conviver com as ovelhas. Tinha uns cobertores por
cima para não se estragar.
Entretanto o rapaz de quando em
vez lá o ia destapando e sonhando com a carta.
E assim continuaram a ir para
feira a pé, porque carta não havia.
Sempre que iam à feira eram
criticados, por uns e por outros.
-Agora que têm um carro tão bom
vão a pé para a feira, lá tão longe.
Outros diziam.
-Tens o carro guardado para
relíquia?
Outros gozavam.
-Não tens dinheiro para a
gasolina?
O que era certo é que não tinha
mesmo dinheiro. Nem para a gasolina nem para pagar o imposto e já o tinham
avisado que ainda lhe penhoravam as ovelhas ou o palheiro para pagar o Imposto
sobre veículos.
Imaginava lá ele que era preciso
pagar tal coisa.
E o seguro? Onde iria arranjar
dinheiro. E as revisões que já lhe disseram que eram caríssimas naquela marca?
E tirar a carta quando pudesse?
Tinha que ir para a vila, gastar mais dinheiro.
Era só despesas e ainda nem tinha
tirado proveito do carro.
Bem que o avô tinha razão em o
querer vender.
Andava pensativo, sem saber que
fazer.
Esperar pela idade de tirar a carta
ou vender o carro e livrar-se de tanta despesa.
Pensou, pensou e deu razão ao
avô.
Estava decidido em vender o bruto
BMW, afinal estava ali a estragar-se e a desvalorizar.
Mas primeiro queria ter o prazer
de dar ali uma voltinha.
Já tinha estado dentro dele
muitas vezes e punha-o a trabalhar. Chegava-o à frente ou atrás de vez em quando,
mas nada de sair dali.
Mas agora que estava decidido a
vende-lo tinha que dar uma volta na aldeia, que ali não havia autoridades.
Saiu do curral, atravessou a
aldeia devagarinho e com cuidado, para espanto dos que o observaram.
Já com alguma confiança fez-se à
estrada, meteu mais uma mudança e acelerou, mas na primeira curva a
atrapalhação tomou conta de si. Sem saber bem o que fazer quando se deu conta
estava a sair a direito voando para cima do poço do ti Manel Reco-Reco.
Não bastou afogar aqueles cavalos
todos que ainda se ia afogado ele também.
Salvou-se preso ao cinto e
entalado pelo airbag.
Quanto ao carro, ficou
possivelmente sem conserto.
Lá se foi uma ilusão.
Moral da história.
Podemos não ser burros, mas se
nos acenam com uma cenoura, lá vamos todos a correr e esquecemos todo o resto
atrás de uma ilusão.
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