quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Exmo. Senhor Administrador dos CTT

                                                                                                                                   Exmo. Senhor

                                                                                                                         Francisco de Lacerda

Senhor Administrador dos CTT, em primeiro lugar queria agradecer-lhe por me ter escrito esta singela carta.


Apesar de eu nunca lhe ter escrito, admiro muito a sua amabilidade e disponibilidade, pelo facto de se ter lembrado de mim, pois eu nem sequer o conhecia, pelo que recebi a sua carta com elevado apreço.

Queria agradecer também aos CTT, que em seu nome se lembrou de mim, neste momento tão importante de mudança de vida desta empresa.

Pois já havia lido a notícia, mas de tão absorvido com o aumento do horário de trabalho na função pública e com os cortes de ordenado que nem tive tempo para lhe prestar atenção a tão proveitosa notícia.

Bem abençoada seja vossa senhoria uma vez que estamos a passar por dificuldades imensas a nível financeiro.

O senhor ao enviar-me esta carta abriu-me a perspetiva de poder ganhar mais um dinheirito, que em abono da verdade bem falta faz, com esta dispersão em bolsa dos CTT.

Sabe que ao abrir a caixa do correio que religiosamente faço todos os dias, que não sei por que razão o faço de forma tão maquinal. Se calhar é da importância que sempre dei às cartas, que marcaram tanto a minha vida.

Ou porque tive que largar a minha terrinha cedo e como sabe, sendo eu pobre a única forma de comunicação com a minha saudosa mãezinha era através da tradicional carta que funcionou muito bem para mim, enquanto não se proporcionaram as novas formas de comunicação que tanto se popularizaram nos nossos tempos.

Mas antigamente a vida era assim. O “correio” era das coisas mais importantes que nos acontecia.

Sabe, o meu pai teve que emigrar à semelhança destes novos tempos que correm e sempre que o carteiro vinha com uma carta na mão era uma imensa alegria.

Vivíamos numa localidade onde a carta era uma coisa quase sagrada.

Havia até um inseto tipo um besouro, que quando ele aparecia pressagiávamos a chegada de correio. A partir daí lá estávamos nós ansiosos todos os dias mortos que o carteiro chegasse com novidades do meu pai, que sempre que podia enviava umas notitas no meio da carta para pagar a divida à padeira que avultava porque as bocas eram muitas.

Mais tarde sem prever esse meu destino acabei por vir a ser carteiro por uns tempos, que foi o suficiente para entender de sobremaneira a importância de uma carta, de uma encomenda, de um vale postal ou daquilo que é mais sagrado para muitos seres humanos, que é a sua reforma ou pensão.

Senhor Francisco de Lacerda, nem o senhor nem estes governantes sem afetos nem sentimentos, sabem da importância de uma carta trazendo a parca reforma.

Não sabem o entusiasmo com que é recebido o carteiro “como um Deus”, muitas vezes ao início da rua, ou da aldeia, onde são aguardados no dia certo a chegada com tanta ansiedade que nem se consegue fazer nada enquanto o carteiro não chega. A carta com o vale que vai tirar da agonia tanta pobreza muitas vezes envergonhada.

Sabe da importância de uma notícia vinda lá de um outro canto do mundo?

O senhor imagina a relação de afinidade e empatia que se cria entre o carteiro ou funcionário da estação dos correios, lá na aldeia ou no bairro, onde se trocam intimidades, tristezas, alegrias com o envio de uma carta ou encomenda?

Sabe o que isso significa, a familiaridade e o apoio que certos idosos e leigos encontram nos funcionários dos CTT?

Senhor de Lacerda, que nome pomposo o senhor tem, deve ser bem-nascido!

Mas o senhor teve uma atitude nobre. Escreveu-me uma carta dizendo-me que chegou a vez de o senhor me escrever com boas notícias!

Mas lá esperava eu por tão melindrosas notícias!

Então o Senhor escreveu-me para me anunciar que vai fazer como os seus amigos do governo, contribuir para baixar o nível salarial dos portugueses e aumentar o desemprego!

O senhor e seus cúmplices preparam-se para entregar ao privado uma empresa estratégica e tão lucrativa e acima de tudo tão emblemática!

Quantos despedimentos isso vai custar e quantas famílias o senhor vai colocar em dificuldades?

Quantos funcionários vão empurrar para a desgraça do desemprego?

Quantos trabalhadores precários pagos com míseros salários o senhor vai criar com a carta que me escreveu e que eu não lhe pedi?

Quanto gastou com essas cartas que eu e tantos outros como eu não pedimos para receber?

O senhor sabe se ainda temos dinheiro para esses devaneios bolsistas e especuladores?

Pior ainda, vai desumanizar ainda mais e tirar o pouco que existia por essas desterradas localidades portuguesas aquilo a quem as pessoas têm tanto apego, a sua estação dos correios?

Embolsam uns milhares numa privatização a troco uns milhões de lucro ao longo de todos estes anos, só porque querem privatizar tudo o que dá lucro?

O senhor vem dizer-me nesta tão desavinda carta que é um convite e que nos vai pôr a continuar a escrever esta história de sucesso dos CTT?

E o preço a que vão chegar as cartas?

E quando irão elas chegar?

Será que quem for para carteiro cumprirá a missão com a mesma dedicação a que nos habituámos, quando passarem a receber vencimentos miseráveis?

Quantas vezes vai passar agora o carteiro e onde vai passar a chegar agora?

Isso sim eram boas ações que passarão à história, com uma empresa tornada fria distante e a pensar unicamente no lucro.

Essas Ações que o senhor me quis impingir, faça delas bom proveito e sempre que receber os dividendos lembre-se das almas que ficaram sem receber correio, sem trocar afetos por causa de uns Lacerdas desumanos e sem sentimentos, que a pretexto de um neoliberalismo desenfreado, que até deu de mão beijada umas licenças bancárias a mais uns abutres estrangeiros que nos vieram rapinar o pouco que ainda nos restava. Os nossos Correios.
Quinhentos anos (da nossa história) destruídos assim.
Só porque é um negócio rentável.
O sucesso em bolsa que virão reclamar será a desgraça de muita gente por esse país fora, quer sejam trabalhadores ou clientes, mas para gente sem preocupações, sem sentimentos e alheados da realidade, afinal que é que isso importa?
Tenham dó.


1 comentário:

Ti Zé d'Aldeia disse...

caro António,
também fui - como quase todos - um dos mimoseados com a tal de missiva do Sr. De Lacerda... E também para comigo pensei, rimando: "Lacerda, Lacerda... vem aí merda!..."
É mais uma, a juntar ao desvario das "privatizações selvagens" (quando houve as nacionalizações ditas selvagens, alguém os indemnizou depois; - e a nós, quando este novo desvario de sinal contrário tiver passado - sim, espero que seja uma moda passageira, embora chegue a duvidar que passe - quem nos indemnizará a nós no fim, depois deste rasto de destruição e de negociatas??? - Ninguém, decerto.
Parabéns pela tua carta ao Lacerda, que nunca a lerá... como decerto nunca leu este célebre excerto do Saramago:

«Privatize-se tudo, privatize-se o mar e o céu, privatize-se a água e o ar, privatize-se a justiça e a lei, privatize-se a nuvem que passa, privatize-se o sonho, sobretudo se for diurno e de olhos abertos. E finalmente, para florão e remate de tanto privatizar, privatizem-se os Estados, entregue-se por uma vez a exploração deles a empresas privadas, mediante concurso internacional. Aí se encontra a salvação do mundo... e, já agora, privatize-se também a puta que os pariu a todos.»
in Cadernos de Lanzarote - Diário III - pag. 148

Grande abraço cá das montanhas, por esta via, sem prescindindo dos CTT's dos novos tempos (até os postais, que costumava mandar com selos, para manter os nossos Correios, passarão a ser por mail); até ao Natal.
tio Zé.